O poder da maquilhagem na beleza (?)
Artigo de opinião | Paulo Costa
Existem mulheres que se levantam de manhã, lavam o rosto com água e vão para a rua, intocadas como a natureza as fez. Benditas sejam. E existem todas as outras que, diante do espelho, se entregam ao ritual de dar uma “forcinha” ao património genético, reinventando diariamente a “persona” com que se apresentam ao mundo.
O tom dos lábios ora é róseo, ora carmim, a espessura das sobrancelhas é ditada por modismos, a cor da tez desejável pode ser alva ou mais banhada pelo sol. Mas o que deve ser ressaltado – e de que maneira – é uma constante que se perpetua através dos tempos. Algumas das maiores beldades da história humana aparecem nas fotos destas páginas, e é notável a similaridade dos artifícios usados, desde Nefertiti, a deslumbrante rainha que reinou no Egipto há quase 3 400 anos, até Catherine Zeta-Jones, a atriz que já foi considerada o modelo hollywoodiano de beleza deste início do terceiro milénio.

Na rainha egípcia as sobrancelhas raspadas e redesenhadas – como em Greta Garbo, a musa sueca – são quase masculinas pelos padrões atuais, mas todo o resto poderia frequentar qualquer página de revista de celebridades, dos lábios carnudos ressaltados pelo vermelho aos olhos contornados com “kohl”, praticamente idênticos à maquilhagem usada por Greta Garbo – e não apenas quando interpretou uma sucessora distante de Nefertiti, a produzidíssima Cleópatra. A ensaísta americana Camille Paglia escreveu que “o Egipto inventou o glamour, a beleza como poder e o poder como beleza”, usando o busto de Nefertiti, descoberto por arqueólogos alemães no começo do século XX, como o marco zero dessa invenção.

As semelhanças nos truques de maquilhagem já foram estudadas por vários ramos da ciência, desde a antropologia até a psicologia evolutiva, que procura raízes do comportamento actual em vantagens reprodutivas incorporadas pelos nossos ancestrais mais remotos. A ideia geral da maquilhagem é ressaltar traços de juventude e saúde valorizados pelos machos nas companheiras escolhidas para perpetuar os seus preciosos genes. Daí os olhos aumentados a proporções quase infantis, as imperfeições da pele disfarçadas, as faces artificialmente rosadas.

Para a boca rubra e húmida, o antropólogo Desmond Morris, pai de todos os “psicoevolucionismos”, saiu-se com a seguinte tese: como nas sociedades humanas as mulheres escondem sob as roupas as características sexuais primárias, os lábios pintados emulam os genitais das fêmeas dos grandes primatas na época do cio, como forma de chamar a atenção dos machos.

Bem, há cientistas que fazem coisas bem piores para chamar atenção. Reduzir os truques de maquilhagem a macaquices biologicamente determinadas ou confiná-los ao terreno da futilidade extrema é uma constante de todos os pensadores – e moralistas – de raízes puritanas. Para toda uma corrente feminista, as mulheres são seres frágeis e indefesos cruelmente manipulados por uma indústria perversa que as obriga a se conformar a rígidos padrões de beleza.
Sêneca, o grande filósofo estoico romano, já imprecava contra cortejos de jovens “com o rosto emplastrado de pomada, para que nem o sol nem o frio ofendam a sua tenra pele” – um sinal de que o conceito do protetor solar não é assim tão contemporâneo. As grandes religiões monoteístas em algum momento implicaram com as mulheres que se maquilham – e no Irão dos aiatolas fundamentalistas chegaram a existir até bem recentemente patrulhas da sombra e do batom. As mulheres podiam ser humilhadas e punidas pelo crime de usar maquilhagem. Hoje, muitas iranianas reconquistaram, por meio de uma espécie de resistência nada passiva, o direito de pintar os olhos, colorir os lábios e até de deixar umas madeixas de cabelo aparecer, sob o véu ainda obrigatório.
Em face do poder da beleza, nem os aiatolas aguentaram.
Imagens: divulgação O poder da maquilhagem na beleza (?) . .
Deixa-nos deslizar nos teus emails. Inscreve-te para receberes a newsletter semanal do Tendências Online.